Além de dar
nome ao filme, Paterson é a um só tempo nome da cidade em que a
narrativa se desenrola e nome de seu inusitado morador. Essa sobreposição de
referências é uma das chaves iniciais para ler esse belíssimo elogio às
miudezas de nosso cotidiano, ansiosas por um olhar de poesia. Somos
constituídos pelos lugares que habitamos. Somos habitados pela geografia dessas
cidades invisíveis, que fundam caminhos pelos quais agimos no mundo. Alguns
deles em preto e branco, como os da personagem de Golshifteh Farahani (do
maravilhoso “Procurando Elly”); outros, em nuances que se refletem em pequenas
telas de vidro (da janela do ônibus, da caneca do bar, do visor do relógio...),
como os do personagem de Adam Drive (que vem chamando minha atenção depois do
inesquecível “Frances Ha” e do bom “Enquanto Somos Jovens”. Ainda não vi
"Silêncio"). Os dois formam o casal que vai costurando os dias que
passam... uma passagem lenta, rotineira, mas entrecortada por sobressaltos que
desafiam o andar costumeiro, o modus operandi do já-sei. Ao longo da semana,
com a sensibilidade de quem aprendeu a dar passos tortos por essas outras
cidades, Paterson vai colecionando alguns vagalumes, que o fazem perceber
escondido, no arranjo dos letreiros da caixinha de fósforos, por exemplo, um
megafone que anuncia a chama diária que acalenta aquela particular vida a dois.
É uma caixinha de fósforos que acende um poema de amor; que faísca uma imagem
que o acompanha ao longo do percurso ao trabalho e que é pensada em verso no
exato momento em que surge um casal de gêmeos (dos “matches”), um dentre vários
outros. Essas pequenas luzes vão guiando o habitante-cidade, “o motorista de
ônibus que lê Emily Dickinson”, a novos encontros, a novas dores, a novos
recomeços. É uma boa sensação acompanhá-lo do lado de cá da tela, mas mais
ainda é tentar aprender, como ele, a nos espantar com o caminho.
Lembrança muda
quando a mudança é estado.
domingo, 18 de junho de 2017
Blake e todos nós
Subjugada pela fome e reduzida a um instinto, uma mulher abre uma lata
de comida entre as prateleiras do lugar em que recebia uma cesta básica. Faz da
mão cuia e come um punhado de grãos em conserva. Em súbita volta ao estado de
humana, de mulher, de mãe de dois filhos, ela chora culpas que embebedam o não
menos doloroso “I’m sorry”, que escapole como um soluço. A expressão inglesa
comporta bem a cena: a mulher não só pede desculpas por seu ato animal, mas
também sente muito. Sente o peso da fome, sente o peso do abandono, sente o
peso da responsabilidade, sente o peso da vida injusta. E é esse sentimento, o
mesmo que irmaniza as pessoas em tragédias, que vai uni-la a Daniel Blake, que
interpreta o papel de tantas e tantas pessoas reduzidas a números de registro,
a nomes na tela burocrática dos computadores do governo, especialmente os
idosos que trabalharam uma vida inteira e não têm nenhum descanso a não ser o
prescrito pelas doenças. Não há quem não se identifique com, pelo menos, uma
das situações retratadas neste filme – o que é muito sério. Naturalizamos o
fato de sermos desrespeitados em esperas de centrais de atendimento, de sermos
diminuídos pelas regras que só desregulam nossas vidas, de termos nossa
paciência testada a cada contato cada vez mais robotizado de muitos atendentes.
Pouco a pouco, vamos perdendo nossa dignidade e, quando isso acontece, como
Blake frisa em um diálogo, acaba tudo. E, às vezes, é uma pichação (sim, ela,
não o grafite) o melhor meio para chamar atenção para a violência que é
desferida diariamente. É um modo de gritar quando ninguém dá ouvido: quem,
afinal, está sendo violado, destruído?
segunda-feira, 17 de novembro de 2014
Sobre os abismos
Cena do filme Her |
que o trabalho do protagonista é este: criar cartas para
e por pessoas desconhecidas. E essa é a grande ironia que perpassa todo o filme
e que o torna complexo como nossas relações. A mesma pessoa que se mostrava
incapaz de escrever a sua própria carta dirigida a quem a merecia, que se
mostrava impotente diante da incompreensão do que se passava consigo mesma, que
se mostrava estagnada diante de um recente vazio, era habilidosa suficiente
para criar cartas belas, porque sensíveis, para outras pessoas que contratassem
seus serviços - e que, por sua vez, também não as escreviam. No filme, Theodore
recorre a um moderno sistema operacional para distrair-se de seu vazio, mas é
se distraindo que ele percebe que um vazio só se preenche quando é encarado,
quando é abismado, quando é possível sentir vertigem. A do protagonista vem em
decorrência do confronto com os números. Muitos, impossíveis aos humanos.
Humanos que são feitos de um corpo e de um, dois, poucos. "Ela" não
trata apenas da relação homem/tecnologia, mas a partir dela nos grita sobre o
movimento necessário de se perder para se achar, de se afastar de si para se
ver, o que só acontece com quem está atento aos esclaros - brigada, Rosa - do
percurso. Não importa tanto se frutos do reluzir da tela do computador ou da
poça d'água que "transporta o céu para o chão".
(Comentário de 19.02.14)
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